
O amor chama atenção. Quando li os textos da Larissa sobre sua irmã, Maria Júlia, não consegui ficar indiferente. As palavras transbordavam respeito e companheirismo. O que é verdadeiro transparece sem dificuldade. Conversei com as duas sobre inclusão, preconceito, o início da carreira da Maju como modelo e a importância da família. Confira:
Larissa, com frequência a Maju é tema dos seus textos. Em um deles, você afirmou que as maiores qualidades da sua irmã transbordam do coração. Como o contato com ela influencia a sua escrita? A sua vida?
Eu fui uma criança tímida, muito reservada e observadora. Comecei a perceber que amava escrever desde cedo, mas ainda não entendia o poder que a escrita tinha. Sempre me limitava a escrever cartinhas de aniversário em nome da nossa família, redações e trabalhos da escola, e nunca tinha imaginado explorar todas as possibilidades de escrever, de me expressar. Foi conhecendo a Maju, pessoa de coração simples, pessoa que não tem medo de se expressar, pessoa que ama sem filtros, que aprendi que existem muitas formas de se comunicar, de dizer, de ser. Não precisamos de palavras difíceis, discursos confusos e textos muito bonitos, precisamos de verdade, de sentimento. E a Maju é assim.
Por muitos fatores, desde a própria síndrome, questões de saúde, passando pelas dificuldades financeiras e lidando com o preconceito, a Maju não conseguiu se alfabetizar na idade em que se espera que pessoas se alfabetizem, ela ainda está nesse processo. E, ao contrário do que muitos pensam, ela sempre comunicou muito bem quem ela é, o que ela quer e passou também a nos ensinar sobre como temos uma visão limitada do que é realmente a linguagem. Ela se expressa tão bem nas passarelas, no olhar, nos abraços, que nunca precisou falar “perfeitamente” porque sempre teve a forma de expressão mais pura e genuína que já vi! E desde então, aprendendo com ela, pude também aprender sobre mim. Eu não gosto de falar, mas amo escrever e passei a acreditar que essa pode ser a minha forma de expressar quem sou e o que quero que as pessoas saibam. Aprendi também que posso fazer isso da maneira mais simples possível, mas acessível porque no final, pra mim, o mais importante é alcançar as pessoas, não afastá-las.
Em ”Palavras como Inclusão e Acessibilidade não deveriam existir”, você diz que a existência dessas palavras se deve ao fato de precisarmos projetá-las, ensiná-las e por não fazerem parte da nossa natureza. Na sua utopia, elas não seriam necessárias. Como podemos ao menos dar alguns passos em direção a isso? Quais comportamentos e mentalidades precisam ser desenvolvidas?
Para mim, precisamos primeiro entender que não LIDAMOS com pessoas com deficiência, nós convivemos e nos relacionamos com elas. Quando usamos o termo lidar, não só no discurso, mas na prática, damos a entender que somos os únicos sujeitos ativos na situação, e também que a situação com a qual “lidamos” é um peso, um problema. É essa visão totalmente distorcida que direciona os pensamentos capacitistas de que a sociedade precisa carregar pessoas com deficiência porque elas não podem oferecer nada além do prejuízo. Em muitos países, inclusive no Brasil, médicos têm autorização para sugerir que pessoas com Síndrome de Down sejam abortadas, já que gerar uma criança assim poderia atrapalhar a nossa sociedade. E quando as pessoas com deficiência não são abortadas no sentido literal da palavra, elas têm suas vidas abortadas de outras formas por conta do preconceito. Começa já na escola, quando as instituições passam a dificultar o acesso de PCDs. O que as pessoas nem sempre enxergam é como a dificuldade de entrar na escola é a principal responsável pela exclusão de PCDs na sociedade. A escola é o espaço mais próximo do exercício de cidadania que uma criança tem, é ali que elas aprendem não somente competências cognitivas como também devem ou deveriam desenvolver competências socioemocionais. Ao contrário da fala do suposto ministro da educação, que, independente do uso de aspas e do contexto, é problemática, pessoas com deficiência têm muito a contribuir para o desenvolvimento da sociedade e inclusive para a educação. Elas não são um estorvo, um acessório, objetos que decidimos descartar ou não. São seres humanos que falham e têm competências, são seres humanos com personalidades, sonhos, caráter, ambições e tudo isso tem muito valor quando se pensa em construir uma sociedade próspera. A presença de PCDs deve ser orgânica assim como nossa relação com eles. Um exemplo de como isso pode acontecer: Maju participou, em agosto, de um projeto do Instagram que visa publicar séries e expandir as funcionalidades do app. Ela atuou numa série cuja história era sobre jovens que viviam juntos em uma república e arrumavam formas de pagar o aluguel. Ela não fala “muito bem” e quando precisa se comunicar com um público que não a conhece, usa linguagens de apoio e no caso da série ela usou Libras. Em nenhum momento no roteiro foi mencionado que ela tinha SD. Ela era uma jovem que vivia os desafios da vida adulta como todos os outros que moravam com ela. Não precisamos ignorar a deficiência assim como não devemos ressaltá-las. A deficiência precisou sim ser considerada no momento de se escrever um roteiro, de encontrar um intérprete para ensiná-la, durante as gravações… Mas quem esteve trabalhando ali no set de gravações com ela testemunhou o benefício da convivência orgânica com a Maju! Ninguém reclamou, muito pelo contrário. Incluir não é um favor para eles, é um dever e um direito que beneficia a todos nós e é isso que precisa ser compreendido!
Como você reage diante do preconceito? Principalmente quando ele se apresenta de forma ”sutil”, com comentários que almejam passar a imagem de inofensivos?
Eu tenho vivido um constante aprendizado. Não é fácil lidar com o preconceito e nunca vai ser porque ele nunca vai ser menos pior. E quando vemos o preconceito acontecer com quem mais amamos, muitas vezes podemos dar voz a um lado nosso que não gostaríamos. Quando eu era criança, sentia muita raiva e brigava muito com as crianças porque sentia muita frustração de ver que as pessoas não davam nenhuma chance para a minha irmã, que é um ser humano incrível. Quando cresci, comecei a entender que tenho um papel na mudança que eu espero ver. Não que seja nossa obrigação ensinar algo que as pessoas já deveriam saber, mas é nosso papel criar esse espaço de respeito, amor e compaixão pelo outro e por nós mesmos e não tem como criarmos esse lugar se decidimos responder a tudo com ódio, vingança e raiva. Reconhecer que preconceito-capacitismo é crime também muda tudo. Hoje, sabemos que podemos denunciar esses casos porque em situações que as pessoas decidem, por maldade, ignorar algo que já aprenderam pelo amor, a melhor forma de combate é mostrando a elas que são criminosas. Tive a oportunidade de trabalhar com um projeto de inclusão em uma escola e eu vi a transformação acontecer com naturalidade. Numa turma onde já existiam pessoas preconceituosas e muitas que até praticavam bullying, conseguimos desconstruir paradigmas e reconstruir valores, tudo isso na base da convivência, do respeito e do amor. É um processo muito cansativo e muitas vezes doloroso, mas se ela, que é o maior alvo do preconceito, consegue seguir, sorrir, amar e viver a própria vida, quanto mais eu, que posso trabalhar para melhorar esse caminho por ela?
Você e a sua mãe cuidam do marketing e idealizam conteúdos para o perfil da Maju. Como as redes sociais alavancaram a carreira da sua irmã?
A Maju se formou como modelo em 2019 e conseguiu ir a 3 semanas de moda antes da pandemia começar. A carreira tinha acabado de começar quando todos os eventos e trabalhos foram compreensivelmente cancelados. Ela não era nada conhecida ainda e não pensávamos numa fama tão rápida assim como possibilidade. Para uma pessoa com deficiência que lutou muito por esse espaço, os efeitos dessa pausa seriam diferentes. Ela nem sempre viveu uma vida super ativa e feliz e esteve à beira de uma depressão por ter que viver em quarentena já há muito tempo, muito antes dessa pandemia. Sem conseguir escolas e com a dificuldade financeira, fizemos o que podíamos para que ela pudesse se desenvolver e crescer, mas ainda muito longe do que ela merecia e precisava. Por conta da cirurgia, e essas outras questões mencionadas antes, ela ficou muito tempo em casa, desaprendeu a conviver e a se relacionar. Foi a nossa fase mais difícil. Sabíamos que com a pandemia seria possível revivermos esses momentos, seria possível ela reviver essa fase e não queríamos isso. Começamos a contar a história dela nos perfis que tínhamos e isso acabou criando uma rede de pessoas que se espelhavam nela, tanto com e sem deficiência. A verdade aproxima as pessoas, histórias de superação, de desafios, tudo isso faz com que as pessoas se inspirem. Não sabemos de nada sobre marketing, mas tínhamos um objetivo, se ela estivesse feliz com esse trabalho investiríamos nele também. Quando a Maju nasceu, não existia instagram, não existiam pessoas contando suas histórias e até pouco tempo atrás a única alternativa para ela ser respeitada e reconhecida seria se formando em uma faculdade, falando inglês. (E não é que não valorizemos os estudos, muito pelo contrário, mas ouvimos muitas pessoas dizerem que ser modelo não é trabalho, que trabalhar com internet não é ter sucesso e por aí vai. Queremos mostrar às pessoas que elas podem escolher, que elas têm muitas possibilidades de ser o que desejarem. E, quando você vive em uma sociedade intransigente, ter alguém falando sobre caminhos diferentes é revolucionário. Com isso, a rede dela foi tomando uma proporção e, juntas, descobrimos ali que a Maju tinha mais outras paixões e dons: de lidar com o público, de interpretar, de falar de moda e arte… Só não esperávamos viver tudo o que temos vivido em menos de 2 anos. Hoje, ela é embaixadora de uma marca que nasceu no país que mais aborta pessoas com Síndrome de Down e isso, pra gente, é um passo muito grande de transformação! Esse espaço foi e é muito importante não só para ela, mas para mim e minha mãe também, porque juntas descobrimos que podíamos unir propósitos e talentos, que poderíamos crescer e mudar a nossa própria história! Quando as pessoas estão felizes com o que fazem, elas se expandem, crescem, inspiram e voam cada vez mais alto. Nosso desejo é que outras pessoas possam sentir isso!

Maju, você participou da Fashion Week, é embaixadora da L’Oréal Paris, gravou uma minissérie e conheceu seu jogador do Flamengo favorito. Só para citar algumas de suas realizações. Você sente vontade de modelar internacionalmente? E de investir na carreira de atriz?
Essa pergunta foi uma boa coincidência, né? Estava realizando um dos meus grandes sonhos de desfilar em uma passarela internacional! E ainda continua sendo um grande sonho: viajar o mundo, desfilando e conhecendo lugares e culturas incríveis através do meu trabalho! Ainda tem muitas semanas de moda internacionais me esperando lá fora. E sobre a carreira de atriz, sempre amei tudo ligado à arte e gostei muito da minha primeira experiência de atuação! Adoraria poder estudar e até atuar nessa área também!
Se você pudesse dar um conselho para a Maju de setembro de 2018, recém descoberta por uma agência de modelos, qual seria?
Não tenha medo da grandeza dos seus sonhos e de tudo que tem acontecido. Você vai encontrar pessoas incríveis pelo caminho que irão segurar sua mão e te apoiar nessa caminhada, você vai crescer e entender que nenhum sonho é impossível de se realizar! Não se preocupe com a opinião de pessoas que não conhecem a sua história, e aproveite todas as oportunidades de crescimento e evolução que surgirem!
Acompanhar as publicações das suas irmãs e da sua mãe sobre você nas redes sociais é enternecedor. Como a família é importante na evolução da sua carreira?
Quando a gente vive num mundo de muitas portas fechadas e caminhos interditados, ter com quem contar é primordial! Minha família me blindou de muitos comentários e pensamentos limitantes, sempre me lembrando do quanto eu era capaz, amada e forte. Eles lutaram e lutam muito para que eu possa viver a vida dos meus sonhos, para que eu seja feliz com as minhas escolhas e para que eu possa ser eu mesma sem medo! O caminho até aqui não foi nada fácil, mas eles tornaram tudo mais feliz e colorido!
O que você gosta de fazer no tempo livre? Quais são os seus hobbies?
Eu amo cantar e dançar! Também amo pintar e desenhar vestidos, praticar esportes, cozinhar, e claro, comer! Gosto muito de assistir filmes, ir ao cinema, à praia. Sempre tento viver bastante, experimento muitas coisas e amo novidades!
Textos da Larissa:
Sobre a Europa e a Cultura de Extermínio da Síndrome de Down
Instagram da Maju: @majudearaujo
Feito por: Thaís Ariel